quarta-feira, 4 de outubro de 2017



 SOBRE AS REZAS DO BATUQUE


Realmente temos problemas com as rezas.

Primeiramente, precisamos ressaltar que elas foram transmitidas oralmente e esse tipo de transmissão funciona como a brincadeira do “telefone sem fio”: cada um que passa, aumenta ou diminui o que está se passando, da maneira que está escutando. Não há culpados nesse sistema. Falamos o que escutamos sobre uma língua que não é nossa, o que resulta em vários vícios de linguagem como, por exemplo, a cacofonia, cacoépia, silabada, etc. De uma forma ou de outra, as rezas sobreviveram e isso importa muito.

Existem muitos mitos e verdades do que é dito sobre elas e sobre o idioma Yorùbá, vamos a eles:


a)                  As rezas são uma mixórdia, uma mistura de vários idiomas e dialetos


Acreditar e pregar que em uma frase existe yoruba, bantu e fon é muito complicado de digerir, pois vai contra as regras de transmissão oral. No meu entendimento, as rezas são todas em yorùbá. Minha opinião parte do princípio de uma fala do Ọba do Benin, quando da entrevista dada ao Gilberto Gil ao questionado sobre Òrìṣà no Vídeo sobre Verger, “O Mensageiro de Dois Mundos”. Ele afirma, em francês, que é o idioma oficial do Benin e o qual se está conversando na entrevista: “Se vamos falar sobre Òrìṣà, vou falar em Yorùbá”. Portanto, a língua Yorùbá é a língua dos Òrìṣà e sempre será. Aliás, a única língua que conheço, que mistura várias línguas, é o Esperanto.

Também nas rezas não possui nenhuma fonética com o som de “Z”, portanto, também podemos descartar qualquer influência Bantu e Fon nelas. Cabe lembrar que no idioma Yorùbá não existem as letras C, Ç, Q, V, X e Z. Provavelmente, nos dicionários futuros, algumas destas letras venham a fazer parte do idioma, visto o crescimento do Islamismo na região e estas pertencem a muitos nomes próprios dos adeptos do Islã.

Com a mescla da Nação Jèjí com as outras, foram incorporados nas rezas, os nomes de alguns Voduns como “Averekete”, “Legba” e “Sakpata”, entre outros, assim como a própria palavra “vodun”, como podemos ouvir claramente quando cantamos a parte Jèjí de algumas rezas. Na parte de nomenclatura de Òrìṣà, temos algumas qualidades que provavelmente são Bantu, como, por exemplo, “Bambalá” para Ọ̀ṣun.


b)                 O Yorùbá que cantamos é arcaico!


Meia verdade! Após a chegada dos negros escravos em terras brasileiras, o idioma não evoluiu, aliás, sua evolução deu-se de forma regional, isto é, acabou tendo influências da Terra Brasilis, principalmente em sua fonética. A língua é dinâmica e sofre influências diariamente, sem falar nas gírias populares que também são passadas oralmente.

Para se ter uma idéia, Samuel Ajayí Crowter, pastor Anglicano e nigeriano, transpôs para o papel o idioma yorùbá e publicou seu dicionário Yorùbá-Inglês em 1843 e até aquele momento, o yorùbá só era transmitido oralmente e desta forma chegou e foi transmitida aqui no Brasil.

Comparando com dicionários atuais, várias palavras já caíram em desuso, mudaram o sentido ou se tornaram obsoletas, mas isso não quer dizer que TODAS as palavras mudaram ou foram extintas. Em sua grande maioria, as palavras continuam com o mesmo sentido.


c)                   Louvo meu Òrìşà com o coração e não com palavras!


Uma coisa não tem nada a ver com a outra: realmente não é preciso falar para se fazer uma louvação. Somente pensar já basta. A religião de um povo fez parte da cultura deste, portanto, temos que observar todos os aspectos culturais que envolvem a mesma. Louvar seu Òrìşà na língua mãe, certamente o aproximará mais da essência do próprio culto. Um amigo meu do Benin, apesar de ser cristão me dizia: "Cantamos para Deus em yorùbá porque achamos que esta língua é pura, melodiosa e certamente a louvação irá direto para o céu".


d)                 Eu falo português e aqui no Brasil ninguém fala em Yorùbá!


Não é verdade. Mesmo abrasileirado, fala-se yorùbá dentro das casas de culto: o nome dos nossos Òrìşà são em yorùbá, os cargos são em yorùbá, os cânticos são em yorùbá e algumas palavras ditas nas feituras também, como Borí, Oríbíbọ, Omiẹ̀rọ, isso sem falar nos “ axé”, "oxéu" e “agôs” da vida.

Apesar de todos os problemas, algumas rezas podem ser traduzidas. Outras, provavelmente deverão ser traduzidas por aproximação. Nesta última forma, as rezas deverão ter coerência e uma mensagem compatível com o Òrìşà em questão. Na minha postagem anterior, eu já havia colocado um exemplo de como é possível traduzir. Relembrando e dando outros exemplos:


Yoruba: Èṣù Òlóde
Fonética: Exú Olôdê
Tradução: Exú, dono das ruas

Yoruba: Èṣù, Èṣù o, Bara Làna.
Fonética: Exú Exú o Bara Lanã
Tradução: Exú Exú! Bara abra o caminho.

Yoruba: Èṣù làna fún mi o
Fonética: Exú lanã fún mi o
Tradução: Exú abra o caminho para mim

Yoruba: Èṣù làna fún Mọ́lè
Fonética: Exú lanã fún molé
Tradução: Exú abra o caminho para os Orixás

Yoruba: Èṣù làna dí burúkú
Fonética: Exú lanã dí burúkú
Tradução: Exú abra o caminho e feche o que é ruim

Àgbàdo ọ̀bẹ nfaarà
Fonética: Agbadô obé nfáára
Tradução: O milho é a faca que está próxima

Traduzir as rezas do Batuque requer tempo, paciência e, sobretudo, conhecimento. Não sou o dono da verdade. Não sou o sabe tudo. Vamos errar, errar e errar. Um dia, acertaremos. O que importa é não desistir de tentar.

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